Por Otávio Martini
A linguagem humana é
objeto de curiosidade de vários pensadores desde a Grécia antiga, filósofos
importantes como Platão já encontravam em suas reflexões um lugar para essa
ferramenta essencial para a sobrevivência. Desde que o suíço Ferdinand de
Saussure propiciou o desenvolvimento da lingüística como uma ciência autônoma
no início do século XX, muitos cientistas tem desenvolvido pesquisas no intuito
de explicar como se dá o processo de aquisição da linguagem e os diversos
aspectos estruturais das línguas naturais.
Uma das mais
significativas teorias linguísticas da atualidade é o Gerativismo ou Teoria
Gerativa, proposta pelo linguista, filósofo e ativista político estadunidense
Avram Noam Chomsky, entre os muitos aspectos contemplados pela investigação do
programa gerativo está o chamado Período Crítico. Partindo do postulado que
afirma a existência de um dispositivo inato responsável pela aquisição da
linguagem (Gramática Universal), a hipótese do período crítico consiste na
ideia de que entre os dois anos de idade e a puberdade, o ser humano passa por
um período mais sensível no processo de aquisição, e caso a criança não adquira
a linguagem durante esse período, seu desenvolvimento linguístico será
comprometido.
O filme Nell, dirigido pelo
cineasta inglês Michael Apted, trata dessa questão com a história fictícia da
protagonista, interpretada por Jodie Foster. A jovem Nell é encontrada vivendo
em uma cabana no meio de uma floresta logo após a morte da mãe. Afastada do contato
humano, exceto pela genitora e a irmã gêmea falecida na infância, a garota desenvolveu
um comportamento agressivo em relação aos estranhos. Um médico da cidade
chamado Jerome Lovell (Liam Neeson) interessa-se pelo caso e decide estudar o
comportamento da “garota selvagem”.
O caso repercute no meio
clínico ao ponto da Dra. Paula Olsen (Natasha Richardson) e do Dr. Paley
(Richard Libertini) unirem seus esforços com o intuito de internar a jovem com
o fim de estudar seu comportamento. Lovell, contudo, opõe-se a essa resolução
defendendo que Nell consegue sobreviver tranquilamente sem a ajuda de qualquer
pessoa, fato presenciado por ele que a observava há algum tempo.
O caso é levado ao Tribunal e
o Juiz decide conceder três meses ao médico e à psicóloga para que a jovem seja
observada e, após esse tempo, realize-se uma nova seção para decidir seu futuro,
no decorrer deste período, Jerome consegue perceber algumas características da
linguagem utilizada por Nell e aos poucos consegue compreender alguns
enunciados, chegando a estabelecer uma frágil comunicação com a jovem, ao passo
que esta se habituava à companhia do médico.
Posteriormente, a Dra. Olsen
instala câmeras e microfones enquanto Nell dorme e percebe que muitas das palavras
emitidas pela jovem são vocábulos do inglês com pronúncia distorcida, um
provável reflexo da linguagem aprendida com a mãe, vítima de derrame e
paralisia, e, portanto, incapacitada fisicamente de articular com perfeição os
sons da língua. Essa hipótese é confirmada pouco tempo depois quando “Jerry”
agora muito próximo à garota lê trechos da bíblia e percebe que Nell repete as
palavras a seu modo, nesse trecho em especial é possível refletir acerca da
relação entre o dispositivo inato e o ambiente, pois a personagem em contato
com a fala comprometida da mãe adquire a linguagem com todas as características
e desvios do ambiente linguístico em que se desenvolveu, corroborando as
ideias de Chomsky, que diz que o ambiente tem influência direta sobre a criança, no sentido de acionar o dispositivo com o qual a criança já nasceu.
As tentativas de diálogo e
compreensão entre os médicos e a paciente são cada vez mais bem sucedidas; contudo, a interferência de curiosos, que aos poucos começam a rodear a casa, faz
com que Jerome e Paula decidam levar Nell à cidade para um primeiro contato com
a civilização, com a constante insistência por parte do Dr. Paley, Nell é
internada em uma clínica, de onde é retirada pelo Dr. Lovell que a leva para um
hotel, o dia da seção se aproxima e a jovem não pronuncia mais palavra alguma e
passa a maior parte do tempo adormecida.
No tribunal, médico e
psicóloga são acusados de se envolver emocionalmente com a paciente, mas então Nell se expressa dizendo
que aprendeu muito em companhia dos médicos e que seu lar é a floresta, com
isso o Juiz decide que ela deve continuar vivendo em sua cabana.
Passados cinco anos, Jerome e
Paula, casados e com uma filha, visitam Nell em sua casa. À medida que o contato da
personagem com falantes diversos do inglês aumenta no decorrer da trama, é
possível notar que o estágio inicial de comunicação por meio de balbucios
progride e Nell consegue aos poucos articular algumas palavras de maneira mais
clara, contudo, mesmo depois de alguns anos sua fala continua marcada pelas
características iniciais, essa melhora na articulação de algumas palavras pode
ser explicada dentro da Teoria Gerativa como um aprendizado cognitivo de
habilidade, ou seja, para Nell não seria mais possível adquirir uma nova
linguagem sem desvios, pois isso já não seria mais função da Gramática
Universal.
O filme recebeu uma indicação
ao Oscar e três ao Globo de Ouro nas categorias de Melhor Atriz, Melhor Filme –
Drama e Melhor Trilha Sonora e é um estimulante auxílio na compreensão da
hipótese do Período Crítico, especialmente recomendado a pesquisadores e
estudantes da área.
Muito interessante! Incrível como o contato com o nosso próximo tem esta capacidade de influência! Tremendo!
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