Ezequiel
Theodoro da Silva*
- SILVA, Ezequiel Theodoro da. Concepções de leitura e suas consequências no ensino. Perspectiva. Florianópolis, v.17, n. 31, p. 11 - 19, jan./jun. 1999.
As relações
entre o pensamento e a ação ou entre a teoria e a prática são
complexas, colocando-se como objetos de reflexão de pensadores de
diferentes procedências científicas. Do muito que já se falou
sobre essas relações, parece não haver muita dúvida sobre a
seguinte afirmação: a maneira pela qual uma pessoa pensa um
determinado processo (ler, escrever, participar, comunicar-se com,
ensinar, aprender, trabalhar, etc.) influencia diretamente as suas
formas de agir quando esse processo for acionado na prática, em
situações concretas de vida.
As minhas
experiências de trabalho junto aos professores brasileiros,
principalmente os de 1º grau, permitiram constituir um acervo de
concepções de leitura, que apontam para as formas de pensar o "ler"
e que orientam a docência nas diferentes séries escolares. Mais
especificamente, fazendo aos professores a pergunta "O que é
leitura ?", consegui arrolar e explicitar um conjunto de
concepções que são mais freqüentes ou recorrentes e que
irrefutavelmente serve como leme para a condução das atividades de
leitura em sala de aula.
A presente
reflexão recupera, analisa e avalia as concepções mais comuns
entre os professores com quem trabalhei nestes últimos 25 anos,
mostrando as suas limitações em termos de estruturação de
práticas de leitura. Outrossim, como uma contribuição adicional,
pretendo descrever um modelo interacionista do processo de leitura,
mostrando aspectos mais densos - e muitas vezes desconsiderados - que
são ativados no momento em que o sujeito interage com um texto
no intuito de produzir sentidos.
Concepções
redutoras de leitura
Apresento,
nesta parte, as definições redutoras de leitura, conforme emitidas
pelos professores de 1º grau. Por '''redutora'' quero dizer
"simplista", ou seja, que despreza elementos fundamentais
da leitura, diminuindo a sua complexidade processual. A origem
histórica do simplismo teórico em educação e no ensino da língua
portuguesa não será aqui analisado, mas arrisco a hipótese de que
o seu enraizamento e a sua permanência na organização escolar
decorrem da própria estagnação docente e das condições objetivas
para a convivência com textos dentro dessa organização. Em outros
termos, a pobreza material do contexto escolar no que se refere à
ambientação para as práticas de leitura é diretamente
proporcional ao empobrecimento de pensamento daqueles que têm por
responsabilidade planejar e orientar essas práticas.
Ler é
traduzir a escrita em fala
Os adeptos
desta concepção reduzem a leitura à ação de oralizar o texto por
parte do leitor. Em outros termos, ler é ler voz alta, obedecendo as
regras de entoação das frases, apresentando boa postura expressiva,
formando unidades frasais entre os enunciados orais, obedecendo as
pausas de pontuação, etc. Como a atenção docente se volta para a
eloquência ou expressividade verbal, os aspectos de compreensão das
idéias evocadas pelo texto podem se perder dentro do formalismo do
encaminhamento metodológico. Daí o surgimento, na escola, do leitor
"papagaio" ou "vitrola", que é sem dúvida capaz
de transformar os símbolos escritos em símbolos orais, mas sem
nenhuma preparação para compreender as idéias referenciadas pelos
textos.
Ler é
decodificar mensagens
A
comparação dos componentes do processo de leitura
(autor/texto/leitor) com os de um canal de comunicação
(emissor/mensagem/receptor ou destinatário) é extremamente
problemática à medida que indica uma passividade do leitor no que
se refere à produção de sentidos. Se tal comparação for levada
ao extremo, poderá parecer que cabe a esse leitor-destinatário
"receber" a mensagem sem muito empenho ou esforço ou, o
que é bem pior, sem demonstrar propósitos, posicionamentos,
sentimentos, atitudes, etc. Daí, muitas vezes, o total desprezo dos
docentes pelo repertório prévio e interesses dos estudantes, o que
coloca estes leitores na condição de entidades vazias - de
conhecimentos e sentimentos - a quem cabe somente decodificar e
"engolir" as mensagens dos múltiplos textos estudados.
Ler é
dar respostas a sinais gráficos
Esta
concepção está intimamente relacionada à ossatura teórica das
teorias de aprendizagem do associacionismo ou behaviorismo em
psicologia. O chamado esquema S (estímulo) - R (resposta), oriundo
dos experimentos pavlovianos com animais em situação de
laboratório, ainda encontra vasta consagração no meio escolar
deste país. Neste caso, o texto é o estímulo e a leitura, a
resposta. Caso o leitor "acerte" a resposta prevista ou
pré-determinada pelo professor (geralmente em azul no manual do
professor), então esse aluno será '''reforçado'', caso ele erre a
resposta prevista, será "punido". Despreza-se aqui
quaisquer possibilidades de um mesmo texto permitir diferentes
interpretações ou sentidos, mesmo porque uma resposta protocolar,
firmada pelo professor, é privilegiada no intuito de permitir
correção e controle.
Ler é
extrair a ideia central
Esta
concepção alça o leitor ao papel de um saca-rolhas ou de um
detector que deve localizar no "complicado mapa" onde está
localizada a parte essencial do texto. Em verdade, a idéia de
"extrair" faz parecer que existe um trecho que deve ser
mais importante do que os outros e que, por isso mesmo, o estudante
deve retirá-lo - se possível ipsis
litteris
- para atender ao propósito ditado pelo professor. O fato é que são
muitos e múltiplos os tipos de organização textual e nem sempre a
idéia principal aparece tão nitidamente colocada numa região
especifica do texto; por vezes, é necessário aglutinar várias
partes no sentido de constituir um sentido mais geral para um
documento escrito.
Ler é
seguir os passos da lição do livro didático
Com a
utilização inocente de livros didáticos, os professores criam um
tipo de concepção que nada mais é do que uma fotografia
padronizada da seqüência dos exercícios contidos na lição. De
fato, uma observação mais atenciosa vai mostrar que, na maioria dos
casos, a lição de leitura é estruturada a partir dos seguinte: (1)
leitura do texto (silenciosamente e/ou em voz alta), (2)
sublinhamento de palavras desconhecidas, (3) verificação do
vocabulário, (4) questionário de compreensão/interpretação, (5)
gramática e (6) redação. Essa seqüência padrão, utilizada
redundantemente no contexto escolar, acaba por produzir uma idéia
completamente distorcida e errônea do processo de leitura, fazendo
com que leitor em formação pense que ler é "oralizar o texto,
fazer vocabulário, responder perguntas, aprender gramática e depois
redigir" invariavelmente!
Ler é
apreciar os clássicos
Não
querendo desmerecer os clássicos ou diminuir-lhes o valor, reduzir
as diferentes competências de um leitor somente à apreciação dos
clássicos da literatura é perder de vista a vasta tipologia de
textos que circulam no mundo contemporâneo. O leitor maduro e
crítico é aquele que convive com diferentes tipos de textos,
inclusive com os de literatura, estabelecendo os propósitos
pertinentes para as suas práticas de interlocução. Não há leitor
de um texto só e não há leitor de apenas um tipo de texto!
Se tomarmos
como objetiva a afirmação de que agimos conforme pensamos, ou
então, que praticamos ações conforme as nossas imagens
pré-configuradas dos processos, contidas no nosso imaginário,
percebemos que estas concepções parciais do processo de leitura
podem levar a resultados altamente nefastos para a educação
escolarizada dos leitores.
De fato, o
apego a uma ou mais dessas concepções pelo coletivo escolar pode
produzir leitores "mancos" mesmo porque estarão praticando
a leitura, ao longo do seu período de formação, a partir de
paradigmas teóricos simplistas, que não levam em conta as múltiplas
facetas e a essência do ato de ler.
Uma
concepção interacionista de leitura
A discussão
e crítica das concepções redutoras de leitura fazem ver a
necessidade de buscar elementos que permitam perceber a sua
complexidade e, ao mesmo tempo, permitam constituir um embasamento
mais denso e abrangente, que possa fundamentar a organização das
atividades de ensino.
A intenção
de adensamento de uma forma de abordar um processo (como o de
leitura, por exemplo) é de fundamental importância ao professor,
mesmo porque revela o movimento incessante de sua consciência em
direção aos resultados alcançados pela pesquisa na área e, mais
do que isso, ao seu compromisso com o próprio avanço do
conhecimento.
Isto posto,
gostaria de apresentar alguns aspectos que, no meu ponto de vista,
podem sensibilizar as retinas dos professores para a questão do
"mistério" da leitura e a "alquimia" subjacente
ao processo de formação
de
leitores. Utilizo esses dois termos para mostrar que, apesar dos
avanços da ciência, ainda existem questões a serem elucidadas
pelos pesquisadores, além disso, nunca é demais lembrar que a
leitura é uma prática social e histórica, sofrendo, por isso
mesmo, transformações com o passar dos tempos. Hoje, por exemplo, a
leitura de textos virtuais, dispostos na telas dos computadores,
impõe novas reflexões e desafios ao ensino-aprendizagem da leitura.
Um início
instigante:
"Na
casa do Padre Perry, o único lugar ocupado era o das estantes de
livros. Gradativamente cheguei a compreender que as marcas sobre as
páginas eram palavras na armadilha. Qualquer um podia decifrar os
símbolos e soltar as palavras aprisionadas, ( ..) A tinta de
impressão enjaulava os pensamentos; eles não podiam fugir, assim
como um animal não pode fugir da armadilha. Quando me dei conta do
que isto realmente significava, assaltou-me a mesma sensação e o
mesmo espanto que tive quando vi pela primeira vez as luzes
brilhantes da cidade do Cairo. Estremeci, com a intensidade de meu
desejo de aprender a fazer eu mesmo aquela coisa maravilhosa."
(grifos meus)**
A linguagem
verbal escrita aprisiona as palavras, enjaula os pensamentos, e cabe
à leitura soltá-los da armadilha... Esta metáfora do processo de
comunicação escrita, além de belíssima, sinaliza a relação que
se estabelece entre o leitor e o texto, gerando uma 'coisa
maravilhosa" que deve ser aprendida de modo a produzir
"espantos".
Ler é
sempre uma prática social de interação com signos, permitindo a
produção de sentido(s) através da compreensão-interpretação
desses signos. Vale a pena esmiuçar esta concepção no intuito de
fazer ver um pouco a sua densidade conceitual e, mais do que isso, a
sua diferença em relação às definições redutoras, descritas
anteriormente.
Ler é
interagir
Significa
que o leitor, através do seu repertório prévio de experiências
(conceituais, lingüísticas, afetivas, atitudinais, etc.), dialoga
com um tecido verbal, que, articulando idéias dentro de uma
organização específica, possibilita a produção ideacional de
determinados referenciais de realidade.
Ao longo
dessa interação, o sujeito recria esses referenciais pela
dinamização do seu repertório. Nestes termos, o texto age sobre o
leitor e, retrodinamicamente, o leitor age sobre o texto.
Ler é
produzir sentido(s)
A riqueza
maior de um texto reside na sua capacidade de evocar múltiplos
sentidos entre os leitores. Além disso, mesmo que um texto
estabeleça limites aos processos de interpretação, quando ele
inicia a sua circulação em sociedade, não existe forma de prever
que sentido(s) ele terá. Assim, cabe aqui o entendimento de que
repertórios diferentes produzirão diferentes sentidos ao texto, a
menos que, conforme
muitas
vezes ocorre na escola, um único significado protocolar seja o
privilegiado para efeito de reprodução e avaliação.
Ler é
compreender e interpretar
Toda
leitura envolve um projeto de compreensão e um processo
de interpretação. De fato, o projeto coloca no horizonte um
propósito para o adentramento na leitura, mantendo a dinâmica em
termos de espaço e tempo (leio sempre com uma determinada
finalidade, mesmo que seja para passar o tempo). Outrossim, o
processo de interpretação demarca a abordagem do texto pelo leitor
de modo que a compreensão vá se constituindo ao longo da leitura em
si (Leio sempre a partir das lentes paradigmáticas ou teóricas que
foram sedimentadas no meu repertório).
Implicações
para o ensino
É claro
que coloco-me numa posição decididamente contrária às concepções
redutoras de leitura dentro do nosso sistema educacional. Isto
porque, se radicalmente assumidas, essas concepções podem agir em
sentido oposto ao objetivo maior da escola, que é o de produzir
leitores que nossa sociedade necessita. E no meu modo de entender, a
sociedade brasileira não está solicitando o leitor ingênuo e
reprodutor de significados, mas sim cidadãos leitores que produzam
novos sentidos para a vida social através da criatividade, do
posicionamento crítico e da cidadania.
A mudança
de mentalidade ou das formas de pensar não é uma tarefa das mais
fáceis, mas, por professar a esperança, acredito que todos os seres
humanos têm condições de superar visões e comportamentos
não-condizentes com o momento histórico. Venho repetindo que a
falta de condições de trabalho tem levado os professores
brasileiros ao mundo da alienação, quando não do próprio
desespero no que se refere às responsabilidades de um magistério de
qualidade.
Uma mudança
de perspectiva sobre as concepções prevalecentes de leitura é
urgente, mas deve ser acompanhada de uma série de ações da
organização escolar como um todo, entre as quais a discussão
coletiva sobre a promoção da leitura a partir do projeto pedagógico
da escola e da estruturação ou melhoria do acervo da biblioteca.
Além disso, uma reflexão sobre o currículo de leitura ao longo das
diferentes séries também se faz necessária para evitar
redundâncias e permitir o planejamento de uma seqüência mais
pedagógica - e menos improvisada - das competências de leitura a
serem praticadas junto aos grupos de estudantes ao longo das séries
de 1º e 2º graus.
Atualmente,
com a explosão das informações e da mídia, a leitura da linguagem
verbal é uma competência de fundamental importância para a
sobrevivência do cidadão. E a escola é o principal reduto onde as
novas gerações podem conseguir o devido preparo para a compreensão
dos vários tipos de organização textual, que compõem o mundo da
escrita. Além disso, diante das velozes transformações do
cotidiano (hoje mundializado), os professores têm que superar o
papel de repassador ou transmissor de informações para, através da
pesquisa e do estudo constante (eis novamente aqui a leitura
exercendo o seu papel), colocar-se em outro patamar de condutas
pedagógicas.
Uma
apreciação carinhosa do poema abaixo pode contribuir nessa busca
que nunca termina...
A PALAVRA
MÁGICA (Carlos Drummond de Andrade)
Certa
palavra dorme na sombra
de um livro
raro.
Como
desencantá-la?
É a senha
da vida
a senha do
mundo.
Vou
procurá-la.
Vou
procurá-la a vida inteira
no mundo
todo.
Se tarda o
encontro, se não a encontro,
não
desanimo,
procuro
sempre.
Procuro
sempre, e a minha procura
ficará
sendo
a minha
palavra.***
Notas
* Professor
do Departamento de Metodologia de Ensino da Faculdade de Educação -
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP.
** MCLUHAN,
Marshall. O
Meio é a Mensagem.
São Paulo, Perspectiva, 1981, p. 278.
*** ANDRADE,
Carlos Drummond de. A
Palavra Mágica.
Poesia. Seleção\Luzia de Maria. Rio de Janeiro: Record, 1997, p.
113.
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