sábado, 2 de maio de 2015

Ora pois, uma língua bem brasileira

Disponível em: http://revistapesquisa.fapesp.br/2015/04/08/ora-pois-uma-lingua-bem-brasileira/. Acesso em 02 de maio de 2015.

A possibilidade de ser simples, dispensar elementos gramaticais teoricamente essenciais e responder “sim, comprei”, quando alguém pergunta “você comprou o carro?”, é uma das características que conferem flexibilidade e identidade ao português brasileiro. A análise de documentos antigos e de entrevistas de campo ao longo dos últimos 30 anos está mostrando que o português brasileiro já pode ser considerado único, diferente do português europeu, do mesmo modo que o inglês americano é distinto do inglês britânico. O português brasileiro ainda não é, porém, uma língua autônoma: talvez seja – na previsão de especialistas, em cerca de 200 anos – quando acumular peculiaridades que nos impeçam de entender inteiramente o que um nativo de Portugal diz.

A expansão do português no Brasil, as variações regionais com suas possíveis explicações, que fazem o urubu de São Paulo ser chamado de corvo no Sul do país, e as raízes das inovações da linguagem estão emergindo por meio do trabalho de cerca de 200 linguistas. De acordo com estudos da Universidade de São Paulo (USP), uma inovação do português brasileiro, por enquanto sem equivalente em Portugal, é o Rcaipira, às vezes tão intenso que parece valer por dois ou três, como em porrrta ou carrrne.
Associar o R caipira apenas ao interior paulista, porém, é uma imprecisão geográfica e histórica, embora o R desavergonhado tenha sido uma das marcas do estilo matuto do ator Amácio Mazzaropi em seus 32 filmes, produzidos de 1952 a 1980. Seguindo as rotas dos bandeirantes paulistas em busca de ouro, os linguistas encontraram o Rsupostamente típico de São Paulo em cidades de Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e oeste de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, formando um modo de falar similar ao português do século XVIII. Quem tiver paciência e ouvido apurado poderá encontrar também na região central do Brasil – e em cidades do litoral – o S chiado, uma característica hoje típica do falar carioca que veio com os portugueses em 1808 e era um sinal de prestígio por representar o falar da Corte. Mesmo os portugueses não eram originais: os especialistas argumentam que o Schiado, que faz da esquina uma shquina, veio dos nobres franceses, que os portugueses admiravam.
A história da língua portuguesa no Brasil está trazendo à tona as características preservadas do português, como a troca do L pelo R, resultando em pranta em vez deplanta. Camões registrou essa troca em Os lusíadas – lá está um frautas no lugar deflautas – e o cantor e compositor paulista Adoniran Barbosa a deixou registrada em diversas composições, em frases como “frechada do teu olhar”, do samba Tiro ao Álvaro. Em levantamentos de campo, pesquisadores da USP observaram que moradores do interior tanto do Brasil quanto de Portugal, principalmente os menos escolarizados, ainda falam desse modo. Outro sinal de preservação da língua identificado por especialistas do Rio de Janeiro e de São Paulo, dessa vez em documentos antigos, foi a gente ou as gentes como sinônimo de “nós” e hoje uma das marcas próprias do português brasileiro.
Célia Lopes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), encontrou registros de a gente em documentos do século XVI e, com mais frequência, a partir do século XIX. Era uma forma de indicar a primeira pessoa do plural, no sentido de todo mundo com a inclusão necessária do eu. Segundo ela, o emprego de a gente pode passar descompromisso e indefinição: quem diz a gente em geral não deixa claro se pretende se comprometer com o que está falando ou se se vê como parte do grupo, como em “a gente precisa fazer”. Já o pronome nós, como em “nós precisamos fazer”, expressa responsabilidade e compromisso. Nos últimos 30 anos, ela notou, a gente instalou-se nos espaços antes ocupados pelo nós e se tornou um recurso bastante usado por todas as idades e classes sociais no país inteiro, embora nos livros de gramática permaneça na marginalidade.
Linguistas de vários estados do país estão desenterrando as raízes do português brasileiro ao examinar cartas pessoais e administrativas, testamentos, relatos de viagens, processos judiciais, cartas de leitores e anúncios de jornais desde o século XVI, coletados em instituições como a Biblioteca Nacional e o Arquivo Público do Estado de São Paulo. A equipe de Célia Lopes tem encontrado também na feira de antiguidades do sábado da Praça XV de Novembro, no centro do Rio, cartas antigas e outros tesouros linguísticos, nem sempre valorizados. “Um estudante me trouxe cartas maravilhosas encontradas no lixo”, ela contou.
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Bilhetes de amor
Os linguistas têm notado a expansão do tratamento informal. “Tenho 78 anos e devia ser tratado por senhor, mas meus alunos mais jovens me tratam por você”, diz Castilho, aparentemente sem se incomodar com a informalidade, inconcebível em seus tempos de estudante. O você, porém, não reinará sozinho. Célia Lopes, com sua equipe da UFRJ, verificou que o tu predomina em Porto Alegre e convive com o você no Rio de Janeiro e em Recife, enquanto você é o tratamento predominante em São Paulo, Curitiba, Belo Horizonte e Salvador. O tu já era mais próximo e menos formal que você nas quase 500 cartas do acervo on-line da UFRJ, quase todas de poetas, políticos e outras personalidades do final do século XIX e início do XX.

Como ainda faltava a expressão do falar das pessoas comuns, Célia e sua equipe exultaram ao encontrar 13 bilhetes escritos em 1908 por Robertina de Souza para seu amante e para seu marido. Esse material era parte de um processo-crime movido contra o marido, que expulsou de sua casa um amigo e a própria mulher ao saber que tinham tido um caso extraconjungal e depois matou o ex-amigo. Em um dos 11 bilhetes para o amante, Álvaro Mattos, Robertina, que assinava como Chininha, escreveu: “Eu te adoro te amo até a morte sou tua só tu é meu só o meu coracao e teu e o teu coracao é meu. Chininha e todinha tua ate a morte”. Já o marido, Arthur Noronha, que recebeu apenas dois bilhetes, ela tratava de modo mais formal: “Eu rezo pedindo a Deus para você me perdoar, mas creio que voce não tem coragem de ver morrer um filho o filha”. E mais adiante: “Não posso me separar de voce e do meu filho a não ser com a morte”. Não se sabe se ela voltou para casa, mas o marido foi absolvido, por alegar que matou o outro homem em defesa da honra.
Outro sinal da evolução do português brasileiro são as construções híbridas, com um verbo que não concorda mais com o pronome, do tipo tu não sabe?, e a mistura dos pronomes de tratamento você e tu, como em “se você precisar, vou te ajudar”. Os portugueses europeus poderiam alegar que se trata de mais uma prova de nossa capacidade de desfigurar a língua lusitana, mas talvez não tenham tanta razão para se queixar. Célia Lopes encontrou a mistura de pronomes de tratamento, que ela e outros linguistas não consideram mais um erro, em cartas do marquês do Lavradio, que foi vice-rei do Brasil de 1769 a 1796, e, mais de dois séculos depois, em uma entrevista do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Projeto
Projeto de história do português paulista (PHPP – Projeto Caipira) (nº 11/51787-5);Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Manoel Mourivaldo Santiago Almeida(USP); Investimento R$ 87.372,10 (FAPESP).

Confira texto na íntegra em:
http://revistapesquisa.fapesp.br/2015/04/08/ora-pois-uma-lingua-bem-brasileira/. Acesso em 02 de maio de 2015.


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