sábado, 1 de agosto de 2015

Alfabetização e ortografia

Por: Loremi Loregian-Penkal e Cristiane Malinoski Pianaro Angelo

A escrita ortográfica, tradicionalmente, e principalmente na escola, é encarada como algo resultante de um esforço de memorização e obtida à custa de repetição. Segundo Nunes (1988, p. 6), o ensino da ortografia deve ser feito através de treinamento e “de acordo com o princípio fundamental da aquisição da ortografia: repetição atenta da escrita de palavras”, pois “é sabido que os hábitos se formam através da repetição das ações”. Além disso, “a boa pronúncia das palavras tem influência direta sobre seu registro gráfico. Muitos erros, bastante comuns, deverão ser corrigidos previamente na linguagem oral”. 

Tal proposta pedagógica baseia-se em uma sequência de sessões de treinos ortográficos em que “cada palavra deve ser repetida [por escrito] de duas a cinco vezes, ... não sendo conveniente repeti-la mais de cinco vezes na mesma sessão”, sendo que “o resultado obtido com o treinamento de palavras isoladas é superior ao de palavras na frase”.

O treinamento, segundo a autora, deve seguir uma escala cujas dificuldades vão sendo acrescentadas: “limitar, na primeira série, o treino de palavras com mais de duas sílabas”; utilizar inicialmente palavras compostas de sílabas formadas por apenas uma vogal e uma consoante; depois disso passar a treinar palavras com “h”; a seguir palavras com “sc”; etc. Para Fagundes (1988, p. 17), a aquisição da ortografia ocorre “através da memorização da forma e dos movimentos para escrever as palavras”, sendo que esse objetivo é atingido por meio de exercícios repetitivos e treinamento para “fixar e conservar a imagem motora de palavras”. 

Como podemos perceber, a concepção de desenvolvimento do conhecimento, empregada por essas autoras, não é algo que seja específico para o ensino da língua escrita e da ortografia, sendo frequentemente empregada para o ensino de qualquer conteúdo escolar. Quanto ao aspecto de se ensinar primeiramente a pronúncia correta para posteriormente se trabalhar as questões ortográficas, percebemos que esta visão é bastante comum nos meios escolares. Mas alguns autores se posicionam frontalmente contrários a essa proposta, argumentando a respeito da diferenciação entre língua falada e língua escrita. 

Desde a perspectiva psicolinguística, Kato (1986) nos alerta que, embora a escrita alfabética (representação de segunda ordem) tenha sido concebida para representar a fala (representação de primeira ordem), ela não chega a ser uma escrita fonética. As modalidades oral e escrita da linguagem apresentam uma isomorfia apenas parcial, porque fazem a seleção a partir do mesmo sistema gramatical e podem expressar as mesmas intenções. O que determina as diferenças entre elas são as diferentes condições de produção, tais como: a dependência contextual, o grau de planejamento, a submissão consciente às regras prescritivas convencionalizadas para a escrita. Por sua vez, dirigindo-se aos professores alfabetizadores, Lemle (1987, p. 27) trata de deixar claro que, ao contrário do que supõe o alfabetizando, “é bastante complicada a relação dos sons da fala com as letras”.

Do ponto de vista do aluno, que está aprendendo a ler e a escrever, “apropriar-se da ideia de que existe uma correspondência biunívoca entre sons e letras é fundamental”, mas ele logo terá que relativizar a concepção de que para cada letra existe apenas um som e de que para cada som existe apenas uma letra.

Lemle ataca a noção de que as crianças que não escrevem ortograficamente assim o fazem porque falam errado: “dizer que alguém fala errado corresponde a um equívoco linguístico, um desrespeito humano e um erro político”. Um equívoco linguístico, pois ignora o fato de que as diferentes comunidades linguísticas possuem os seus próprios dialetos. Um desrespeito humano, pois humilha e desvaloriza a pessoa que recebe a qualificação de que fala errado. Um erro político, pois ao se rebaixar a autoestima linguística de uma pessoa ou de uma comunidade, contribui-se para achatá-la, amedrontá-la e torná-la passiva, inerte e incapaz de manifestar seus anseios. 

Cagliari é outro linguista que afirma que a linguagem é dinâmica, modificando-se em função do tempo e do espaço, não podendo ser consideradas como erradas as falas características de uma dada comunidade. O autor salienta também as diferenças entre língua escrita e falada: 

A fala tem aspectos (contextuais e pragmáticos) que a escrita não revela, e a escrita tem aspectos que a linguagem oral não usa. São dois usos diferentes, cada qual com suas características próprias, sua vida própria, almejando finalidades específicas (1997, p. 37).

A aparente arbitrariedade da ortografia possui uma regularidade nem sempre compreendida: a função de representar mediante constantes gráficas os conteúdos semanticamente relacionados. O sistema ortográfico não possui uma correspondência estrita com o sistema fonológico e, consequentemente, deve recorrer a representações gráficas que permitam reconhecer as relações morfossintáticas no texto escrito. 

Texto disponível em:
https://periodicos.utfpr.edu.br/rl/article/view/2338/1474. Acesso em 01 de agosto de 2015.

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