A escrita ortográfica, tradicionalmente, e principalmente na escola, é encarada como
algo resultante de um esforço de memorização e obtida à custa de repetição. Segundo Nunes
(1988, p. 6), o ensino da ortografia deve ser feito através de treinamento e “de acordo com o
princípio fundamental da aquisição da ortografia: repetição atenta da escrita de palavras”, pois
“é sabido que os hábitos se formam através da repetição das ações”. Além disso, “a boa
pronúncia das palavras tem influência direta sobre seu registro gráfico. Muitos erros, bastante
comuns, deverão ser corrigidos previamente na linguagem oral”.
Tal proposta pedagógica baseia-se em uma sequência de sessões de treinos
ortográficos em que “cada palavra deve ser repetida [por escrito] de duas a cinco vezes, ... não sendo conveniente repeti-la mais de cinco vezes na mesma sessão”, sendo que “o resultado
obtido com o treinamento de palavras isoladas é superior ao de palavras na frase”.
O
treinamento, segundo a autora, deve seguir uma escala cujas dificuldades vão sendo
acrescentadas: “limitar, na primeira série, o treino de palavras com mais de duas sílabas”;
utilizar inicialmente palavras compostas de sílabas formadas por apenas uma vogal e uma
consoante; depois disso passar a treinar palavras com “h”; a seguir palavras com “sc”; etc.
Para Fagundes (1988, p. 17), a aquisição da ortografia ocorre “através da memorização
da forma e dos movimentos para escrever as palavras”, sendo que esse objetivo é atingido por
meio de exercícios repetitivos e treinamento para “fixar e conservar a imagem motora de
palavras”.
Como podemos perceber, a concepção de desenvolvimento do conhecimento,
empregada por essas autoras, não é algo que seja específico para o ensino da língua escrita e
da ortografia, sendo frequentemente empregada para o ensino de qualquer conteúdo escolar.
Quanto ao aspecto de se ensinar primeiramente a pronúncia correta para
posteriormente se trabalhar as questões ortográficas, percebemos que esta visão é bastante
comum nos meios escolares. Mas alguns autores se posicionam frontalmente contrários a essa
proposta, argumentando a respeito da diferenciação entre língua falada e língua escrita.
Desde a perspectiva psicolinguística, Kato (1986) nos alerta que, embora a escrita
alfabética (representação de segunda ordem) tenha sido concebida para representar a fala
(representação de primeira ordem), ela não chega a ser uma escrita fonética. As modalidades
oral e escrita da linguagem apresentam uma isomorfia apenas parcial, porque fazem a seleção
a partir do mesmo sistema gramatical e podem expressar as mesmas intenções. O que
determina as diferenças entre elas são as diferentes condições de produção, tais como: a
dependência contextual, o grau de planejamento, a submissão consciente às regras prescritivas
convencionalizadas para a escrita.
Por sua vez, dirigindo-se aos professores alfabetizadores, Lemle (1987, p. 27) trata de
deixar claro que, ao contrário do que supõe o alfabetizando, “é bastante complicada a relação
dos sons da fala com as letras”.
Do ponto de vista do aluno, que está aprendendo a ler e a
escrever, “apropriar-se da ideia de que existe uma correspondência biunívoca entre sons e
letras é fundamental”, mas ele logo terá que relativizar a concepção de que para cada letra
existe apenas um som e de que para cada som existe apenas uma letra.
Lemle ataca a noção de que as crianças que não escrevem ortograficamente assim o
fazem porque falam errado: “dizer que alguém fala errado corresponde a um equívoco
linguístico, um desrespeito humano e um erro político”. Um equívoco linguístico, pois ignora o fato de que as diferentes comunidades linguísticas possuem os seus próprios dialetos. Um
desrespeito humano, pois humilha e desvaloriza a pessoa que recebe a qualificação de que fala
errado. Um erro político, pois ao se rebaixar a autoestima linguística de uma pessoa ou de
uma comunidade, contribui-se para achatá-la, amedrontá-la e torná-la passiva, inerte e incapaz
de manifestar seus anseios.
Cagliari é outro linguista que afirma que a linguagem é dinâmica, modificando-se em
função do tempo e do espaço, não podendo ser consideradas como erradas as falas
características de uma dada comunidade. O autor salienta também as diferenças entre língua
escrita e falada:
A fala tem aspectos (contextuais e pragmáticos) que a escrita não revela, e a escrita
tem aspectos que a linguagem oral não usa. São dois usos diferentes, cada qual com
suas características próprias, sua vida própria, almejando finalidades específicas
(1997, p. 37).
A aparente arbitrariedade da ortografia possui uma regularidade nem sempre
compreendida: a função de representar mediante constantes gráficas os conteúdos
semanticamente relacionados. O sistema ortográfico não possui uma correspondência estrita
com o sistema fonológico e, consequentemente, deve recorrer a representações gráficas que
permitam reconhecer as relações morfossintáticas no texto escrito.
Texto disponível em:
https://periodicos.utfpr.edu.br/rl/article/view/2338/1474. Acesso em 01 de agosto de 2015.
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